O salvador é personagem de alguns filmes nas décadas de 60 e 70. Podemos lembrar, inclusive, de uma pelícua feita por Glauber Rocha, na Espanha, chamado Cabezas Cortadas. Uma ceifa, arma do salvador, junto aos guerrilheiros surgem das montanhas rochosas à procura do rei Diaz – do conhecido país Eldourado. Só que este filme vem logo após uma reflexão de Phillipe Garrel, em Le lit de la Vierge.

Nele, Garrel põe no onírico revolucionário uma melancolia que chega ao fastio – não há salvação certa no leito da virgem. Nem mesmo Maria Madalena, que guarda o que um dia atiraram em seu corpo, consegue livrar Cristo dessa depressão. Mesmo lembrando um pouco o show de Jesus Cristo Super Star, com as músicas conhecidas da conturbação norte-americana e inglesa da década de 60, o horizonte fica na nulidade.

Cristo carrega algo que poderia ser a caixa de Pandora. O inferno. Em uma caixa pequena e leve, como uma mala. O que mais nos alucina é a perseguição interminável de cães e policiais modernos ao jovem cristo – uma parábola difícil de se esquecer após os movimentos de 68. Não huve salvação – só a tragédia para nos purgar desse sacrifício de ainda acreditar em uma revolução socialista.

Assim Garrel desmistifica, mitificando como Jodorovsky, a solução seca e militante. Glauber deve muito a esse cineasta. Deve também a Jodorovsky, mas a Garrel ele deve um personagem que supriu sua alucinação via emancipação do terceiro mundo.

Novo Espetáculo

fevereiro 2, 2008

Será este o primeiro norte-americano afro-descendente a chegar ao cargo mais alto do mundo? Ao cúmulo, centro do império? Àquela cadeira que já serviu de andaime pra dias de preguiça e fadiga de George W. Bush pai e filho? Tomara.

O belo e sagaz John Edwards saiu da frente – agora, no partido democrata, temos a mulher de Clinton, Hillary, e o negro Barack Obama na disputa. Seria um fato histórico para o espetáculo político pós-moderno. Daria fôlego aos movimentos negros. E talvez, se Barack chegasse (chegar) ao trono, teríamos como ver a política internacional desse, que talvez, seja o mais querido presidente, desde Kennedy. Ao mesmo tempo, também o mais visado por miras de milícias armadas conservadoras da própria nação estadosunidense.

A morte e Glauber Rocha

fevereiro 1, 2008

Serge Daney

«Genial e incómodo; o mais conhecido – e é sem dúvida o maior – dos cineastas brasileiros estava um pouco esquecido. Cinema novo, tropicalismo, tricontinentalismo estão longe? Ele, Glauber Rocha, não esquecia nada.

A última vez que vi Glauber Rocha foi nos escritórios dos Cahiers du cinéma, perto da Bastilha. Não o conhecia, mas tinha visto os seus filmes dez anos antes. Já ninguém falava dele, excepto para dizer que tinha ficado louco ou que se tinha comprometido com o regime militar brasileiro. Tinha vindo a França mostrar, quase em bicos de pés, o seu último filme, um filme a que tinha dedicado bastante tempo, dinheiro e trabalho e que tinha deixado os festivaleiros de Veneza pelo menos perplexos. Esse chamava-se A idade da terra e não se parecia a nada de conhecido. Um filme torrencial e alucinado. Um Ovni fílmico, nem mais, nem menos. Glauber estava em Paris para tentar distribuir o seu filme, reatar alianças, fazer o ponto da situação. Falava muito, delirava certamente: nada do que dizia era insignificante.
Nos Cahiers, pedimos-lhe se aceitaria escrever ou dizer alguma coisa a propósito de Pasolini, que tinha conhecido, e a quem consagrámos então um número especial. Ele fechou-se num gabinete, e, não tendo necessidade alguma de entrevistador, falou sozinho durante horas para um pequeno gravador. Pouco à vontade, ouvíamos a sua voz veemente, o charme do sotaque brasileiro em francês, o ajuste de contas raivoso e afectuoso com PPP, as censuras post mortem. Era já um diálogo de mortos. Não o voltámos a ver, pois partiu para Portugal onde parecia trabalhar num projecto de filme. Acaba de morrer, no seu regresso ao Brasil, de complicações de uma doença de que nada sabemos.
Dos grandes agitadores do cinema moderno, Glauber Rocha era talvez o mais distante de nós. Desde logo porque, a partir dos anos 70, a sua reputação tornou-se francamente má: tinha virado a casaca, tinha dito bem dos regimes militares de Geisel e de Figueiredo e o organismo de estado do cinema, a Embrafilme, tinha enfiado muito dinheiro nesse filme fleuve e louco, o ovni-A idade da terra. Depois porque, no fundo, sempre tinha estado longe, tão longe de nós como o Brasil pode estar. Se houve aproximação foi porque nessa época de loucuras, havia ainda uma coisa que se chamava “história do cinema” que tecia sob os nossos olhos as alianças mais paradoxais. Glauber Rocha podia discutir montagem eisensteiniana com Godard, dizer em que é que Faulkner era um escritor cinematográfico, ou, paradoxo, porque era necessário considerar Buñuel um cineasta “tricontinental”. Não parecia haver diferenças entre as guerrilhas que levavam as “novas vagas” do mundo, fossem quais fossem as margens onde morriam. Resistia-se: resistia-se a Hollywood-Mosfilm, com uma mistura de revolta e de piedade. Ainda não se pensava que a América tinha ganho definitivamente no domínio das imagens e dos sons.
Em 1963, Glauber Rocha e seus amigos (Diegues, Hirzsman, Guerra, dos Santos, Saraceni, etc.) tinham publicado um panfleto: “Revisão crítica do cinema brasileiro”. Nascido na Bahia em 1938, Glauber, como toda a gente, tinha animado um cineclube e escrito críticas de filmes. Como toda a gente na América Latina, ele e os seus amigos tinham aproveitado um momento de liberalização, de uma trégua, para tentar mudar, do interior, o cinema brasileiro. Três filmes estabelecem a sua reputação: Deus e o Diabo na terra do Sol (63), Terra em transe (66), António das Mortes (68).
A crítica ocidental, sempre curiosa de folclore e ébria de rótulos, adorou esse novo cinema, esse “cinema nôvo” que Glauber simbolizava. Adorava-o tanto quanto não conhecia nada do antigo, nem do Brasil aliás. Depois, à medida que os militares voltavam a agarrar pelo pêlo o animal (e que animal!), esqueceu-o. Recambiados às suas contradições, as cabeças de cartaz do dito cinema novo afrontaram cada um por si a sequência dos acontecimentos: Glauber exila-se em 1971, Hirzsman cala-se, Ruy Guerra irá para Moçambique, apenas Diegues se torna pouco a pouco o cineasta brasileiro. Glauber Rocha, o mais evidentemente “genial” de todos, terá a evolução mais errática. Dois filmes-monstros que era preciso rever hoje em dia, Der Leone have sept cabeças (1969) e Cabeças cortadas (1970), o projecto não concluído de uma História do Brasil, um filme falhado em Itália (Claro), uma aparição-gag em Vent d’est de Godard, uma curta-metragem controversa (Di Cavalcanti), e, para acabar, A idade da terra.
Genial mas incómodo, figura vagamente admirada, temida ou desprezada da paisagem intelectual brasileira, personagem pública difícil de manipular, mesmo para os militares a quem ele tinha escandalosamente (como táctica?) elogiado os méritos mas de quem não se via como se poderia tornar refém ou o cineasta oficial. Demasiado louco. Glauber Rocha queimou assim muitas pistas, deixou muitos amigos, disse uma quantidade de coisas erradas. Em 1980, em Veneza, porta-se muito mal e insulta Louis Malle, de quem Atlantic City acabava de ser coroado. Vê por todo o lado o imperialismo americano, vê por todo o lado a mão de Hollywood.
Isto não era de ontem. Em 1967, declarava – ideia banal à época – “Os instrumentos estão em Hollywood como outros estão no Pentágono. Nenhum cineasta é suficientemente livre.” Era a época do sonho tri-continental: “As escolhas de um cineasta tri-continental intervêm no momento em que a luz bate, ou seja quando a câmara se abre para o terceiro-mundo, terra ocupada. Na rua, no deserto, nas florestas, nas cidades, a escolha impõe-se e mesmo quando a matéria for neutra, a montagem faz-se discurso. Um discurso que pode ser impreciso, difuso, bárbaro, irracional, mas em que todas as recusas são significativas.” Ao ver, catorze anos mais tarde, A idade da terra, disse-me que sobre este ponto Glauber não tinha mudado. Um filme à imagem do Brasil, “povo palavroso, falador, enérgico, estéril, histérico” (sempre segundo G.R.).
Nesse filme em que já não enganava ninguém, em que estava sozinho com o seu delírio, Glauber fazia voltar à nossa memória um sonho esquecido, esse de um outro cinema, outra coisa que o “made in USA”. Porque isto existiu, em várias épocas, essa ideia de que os cineastas de todos os continentes podiam arranjar diferentemente as imagens, propor ao cinema outra coisa que o seu triste devir-televisão ou o seu sinistro devir-museu. Um cinema de montagem, físico e discordante, um cinema-ópera para variar da opereta americana. Isto existiu outrora.
Ao reler as velhas conversas entre Glauber e os Cahiers, a imagem do profeta intratável e duvidoso com a qual se tinha acabado por confundir esfuma-se um pouco. É certo que ele foi, mais que qualquer um, o artista pequeno-burguês que todas as ortodoxias odeiam, o eterno aprendiz de feiticeiro da política, inconstante, provocador, etc. Era mesmo esse o tema de Terra em transe [2ª, dia 6, 21h30 – Cinemateca], um filme brilhante e masoquista: que ditador servirá o poeta? No entanto, o que ressalta dessas entrevistas é a prodigiosa cultura de Glauber: o seu conhecimento íntimo do cinema (incluindo o americano), a reivindicação de uma “brasileiridade” e, ao mesmo tempo, essa ideia de que existem por toda a parte, debaixo das aparências dos santos oficiais, os ídolos dos dominados. Por trás dos quais, por vezes, eles se sublevam. Os filmes de Glauber são westerns em que matadores de cangaceiros, misticismo camponês e manipulações políticas formam um único argumento. Sobre o “folclore”, tinha muito a ensinar-nos. De formação protestante, fascinado pelos rituais católicos, sabe encontrar por trás deles os deuses africanos, por trás de S. Jorge as divindades que se chamam Oxosse ou Ogun, por trás da Igreja o Candomblé.
Mas atenção, não há para ele deuses verdadeiros e falsos, há (diriam Deleuze e Guattari) deuses que “fazem rizoma”, há imagens que deslizam umas sobre as outras, todas verdadeiras e todas falsas. O que conta não é a Terra, é a Idade. Se a palavra cultura tem hoje um sentido, onde senão no Brasil? Um cineasta empoleirado no fluxo das imagens, nas línguas do mundo inteiro, quem senão Glauber? É um pouco a censura que ele fez a Pasolini nos escritórios dos Cahiers du cinéma: PPP foi perverso quando era preciso ser subversivo, mais grave: sonhou com um Cristo-Édipo quando era preciso um Cristo negro e nu.
Não espanta que a referência constante de Glauber seja Eisenstein. O autor de Potemkine tornou-se hoje, nas ruínas dos nossos cineclubes, uma glória longínqua e quase incompreensível. Esquece-se que qualquer cineasta debutante nesse lado do mundo que a si próprio se inicia (esse lado dito “terceiro”), o encontra no seu caminho. Nada de político aqui. Eisenstein faz voltar o cabaré, o circo, o travesti, a paranóia alegre, o gosto pelas formas e pelas suas metamorfoses, o pequeno e o grande, o micro e o macro. A cultura enciclopédica e o samba perante os ídolos. Fazer surgir das coisas uma beleza impura, mestiça. Para Glauber, o diálogo com Eisenstein nunca se acaba. “Mesmo para Eisenstein, a tentativa de tornar estético o Novo Mundo equivalia à de levar a palavra de Deus (e os interesses dos conquistadores) aos Índios”, diz ele. A idade da terra é um pouco, na era do vídeo, do zoom e do som sobressaturado, a resposta a S.M.E., a terceira parte de Ivan, o terrível.
Ele desconcertou, inventou, chocou, decepcionou. Nada cedeu do seu desejo. Com obstinação, não cessou de colocar uma questão que, receio, se tornou obsoleta: o que seria um cinema que não devesse nada aos USA? É talvez pedir demais. Mas quem responderá?

24 de Agosto de 1981»

Serge Daney, «La mort de Glauber Rocha», Ciné journal, Volume I / 1981-1982, Cahiers du cinéma, Paris, 1998, pp. 54-60.

retirado do blog Ainda não começamos a pensar

(a propósito das História(s) do Cinema)

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Godard e Daney falando sobre as histórias do cinema. Dois olhares semelhantes sobre a situação do cinema, mesmo objeto de estudo: o cinema enquanto “histórico”. Em momentos, entretanto, parece que os dois falam línguas diferentes, que desenvolvem seu pensamento paralelamente, com pequenas bifurcações apenas. Estilo um pouco estranho, mas que dá uma idéia da dimensão do pensmento contemporâneo sobre o cinema e sua história.

Serge Daney: Você faz a história do cinema no momento em que está claro para você que essa pesquisa não se realizou, ou que ela acabou, e que os ensinamentos que ela poderia ter sobre a vida das pessoas, dos povos, das culturas não foram absorvidos. Quando você era mais didático, quando você acreditava na transmissão das coisas, de maneira mais militante, eu me dizia que você tentava sempre reconduzir as experiências que podemos ter através de um filme na vida das pessoas, mesmo que você as impusesse de forma muito dura. Agora, você diria que é impossível fazer algo assim, mesmo que o cinema tenha tentado fazê-lo. É, então, somente a história de um fracasso ou é um fracasso tão grandioso que ainda vale a chance de recontá-lo?

Jean-Luc Godard: A felicidade não tem história…

SD: Se você vê um filme de Vertov hoje: havia em sua obra hipóteses muito originais, que fizeram dele um cineasta muito minoritário. Admitamos que isso foi escondido por Stalin…

JLG: Até por Eisenstein. Mas suas disputas eram muito saudáveis. O problemas vinha antes daqueles que os contaram: a linguagem, a imprensa. Não estamos curados dessa língua, a não ser no momento em que falamos quando estamos doentes, e quando devemos ver um bom analista (e há poucos, da mesma forma que há poucos pensadores bons). O fato de meu pai ter sido médico provavelmente me conduziu a isso de forma inconsciente: dizer que uma doença é sinusite já é montagem. O cinema indica que alguma coisa é possível se nós nos esforçarmos em chamar as coisas pelos seus nomes. E o cinema era uma nova maneira, vasta e popular, de chamar as coisas pelo nome. (…)

SD: Retomo esse exemplo de Vertov. Há algo no cinema que tentou se deixar ver, que foi visível, mas que depois foi recoberto. Mas eles, os filmes, permanecem: é possível ver a fita de um filme de Vertov. A coisa que era para ver por trás do filme de Vertov foi recoberta, mas de qualquer maneira permanece o objeto, que sobrevive a todas as leituras, a todas as não-leituras. E você, o que sente diante desse objeto: admiração, tristeza, melancolia? Você acha tudo isso bom?

JLG: O cinema é uma arte, e a ciência é também uma arte. É o que eu digo nas minhas História(s) do Cinema. No séc. XIX, a técnica nasceu, num sentido operatório, e não-artístico (não no nível do movimento do relógio de um pequeno relojoeiro do Jura, mas de 120 milhões de Swatch). Ora, Flaubert conta que esse nascimento da técnica (as telecomunicações, os semáforos) é simultânea à besteira, a de Madame Bovary.
A ciência tornou-se a cultura, logo, outra coisa. O cinema, que era uma arte popular, deu nascimento à televisão, e isso por sua popularidade, mas também ao desenvolvimento da ciência. Ora, a televisão é a cultura, ou seja, comércio; transmissão, e não arte. O que os ocidentais chamavam de arte se perdeu um pouco. Minha hipótese de trabalho em relação à história do cinema é que o cinema é o último capítulo da história da arte de um certo tipo de civilização indo-européia. As outras civilizações não tiveram arte (isso não quer dizer que elas não criaram), elas não tinham essa idéia de arte ligada ao cristianismo, a um só deus. Não é surpreendente que se fale muito da Europa hoje em dia: é porque ela desapareceu, logo, é preciso criar um ersatz [compensação, equivalente. N. do T.], como diziam os alemães durante a guerra. Tem-se o maior trabalho em desmembrar o império de Carlos Magno e depois refazem-no… Mas isso só concerne a Europa Central o resto, como a Grécia, não existe.
Logo, o cinema é arte para nóe. Além disso, nós sempre disputamos com Hollywood, e nós a censurávamos por não se comportar como Durand-Ruel ou Ambroise Vollard com Cézanne, ou Theo Van Gogh com seu irmão. Nós a censurávamos por ter um ponto-de-vista unicamente comercial, de tipo cultural e não artístico. Só a Nouvelle Vague disse que o cinema americano era arte. Bazin admitia que A Sombra de uma Dúvida era um bom Hitchcock, mas não Interlúdio. Como verdadeiro social-democrata, ele achava abjeto que com um assunto tão “nulo” se possa fazer uma encenação tão maravilhosa. É, só a Nouvelle Vague reconheceu arte em certos objetos que foram desviados de seus temas pelas grandes companhias. Sabe-se que, historicamente, num momento, essas grandes companhias, como os grandes feudos, tinham poder sobre os grandes poetas. Como se François I tivesse dito a Leonardo da Vinci ou Júlio II a Michelângelo: “Pinte as asas do anjo dessa forma, não de outra!” É um pouco a relação que deve ter existido entre Stroheim e Thalberg.
Para mim, arte é ciência, ou ciência é arte. Não acho que Picasso seja superior ou inferior a Vésale, eles são iguais em seu desejo. Um médico que cuida de uma sinusite é da mesma ordem de eu fazer um belo plano de Maruschka Detmers. Não é preciso fazer muitos livros sobre ciência. Einstein escreveu três linhas, não se pode escrever muito sobre ele. E é bom que a língua não se misture com isso. Gosto muito de A Natureza na física moderna, onde o que Eisenberg diz não é o que ele viu. Há um grande combate entre os olhos e a língua. Freud tentou ver isso de uma outra maneira.

SD: Vamos tentar resumir. Primeiramente, o cinema é uma arte, e o último capítulo da história da idéia de arte no Ocidente. Em segundo lugar, o que é importante no cinema é que ele dá informações sobre aquilo que as pessoas podem ver.

JLG: Sim, e de forma agradável: contando histórias. O cinema era também um laço com outras civilizações. Um filme de Lubitsch conta o que você pode ler nas Mil e uma Noites. As outras formas de arte não tinham esse aspecto, elas eram estritamente européias. Depois, sob influência do cinema, as coisas mudaram. Dessa forma, o período negro de Picasso veio na época do cinema. Ele não é motivado pelo colonialismo, mas pelo cinema. Delacroix, que vivia na época do colonialismo, não foi influenciado pela arte negra e árabe como Picasso. O cinema pertence ao visual, e não o deixaram encontrar sua própria palavra, que não vem do Événement de Jeudi… Mallarmé certamente falou da página branca depois de sair de um filme de Feuillade, e até digo que filme era: Erreur Tragique. É o que encontraria um investigador se pesquisasse o que Mallarmé fez no dia em que escreveu esse texto…

SD: O cinema também criou esse sentimento de pertencimento ao mundo e até ao planeta, que está prestes a desaparecer com a comunicação. Eu, quando ia ao cinema, eu me era levado um pouco como um órfão do social; o filme (graças à montagem, à narrativa) me alçava do social antes de me remeter a ele. Isso mudou com a televisão, e em geral com as mídias, que têm uma importância cada vez maior. Diante da minha televisão, tarde da noite, vejo por exemplo informações que evocam acontecimentos muito tocantes, muito reais. Mas o sentimento não é o mesmo: eu não sou tomado como sujeito, mas como adulto impotente, com um vago sentimento de compaixão, ligado à comunicação moderna, que nos torna triste por estarmos impotentes. É aí que a gente vê que o cinema nos adotou, nos dando um mundo suplementar, que poderia fazer a ligação entre a cultura que tinha o monopólio da percepção e o mundo a perceber (…)

JLG: O fracasso de que você fala não foi o fracasso do cinema, foi o fracasso dos seus pais. É também por isso que ele foi tão popular. Todo mundo pode gostar de um Van Gogh, como Os Corvos, mas o cinema permite a difusão para todos os cantos, e de uma forma menos terrível. É o que faz com que todo mundo tenha gostado do cinema e se sentido tão próximo dele. De fato, o cinema é a terra, e a televisão é a invenção do arado. O arado é ruim se não soubemos nos aproveitar dele. Sinto o fracasso sempre que penso: “Ah! Se deixassem a gente fazer…” É aliás o que pensam muitos cineastas. O fracasso é que os pontos cardeais do cinema se perderam: tinha o Leste e o Oeste, e a Europa Central. Não há cinema egípcio, mesmo que haja filmes magníficos, a mesma coisa para o cinema sueco. Não há mais grande eixo, enquanto o cinema é feito para expor, para por em relevo, é como um dossiê que abrimos. É próximo do romance, na medida em que as coisas têm um prosseguimento, mas o visual faz com que ele tenha o peso de uma página, e o peso de uma outra página. Há também o sentido: é preciso dos quatro pontos cardeais. Ora, a televisão se rebate sobre o Leste e o Oeste, mas não faz o Norte nem o Sul. A televisão, a não ser de forma estúpida, deve trabalhar com o tempo, é sua função. (…)
A Nouvelle Vague foi excepcional no sentido quem, depois de Langlois, ela acreditou no que ela via. É tudo.

SD: Mas a Nouvelle Vague foi a única geração que começou a fazer cinema no momento da chegada da televisão. Então ela já pertence aos dois mundos. Além disso, o próprio Rossellini, que exerceu um papel muito importante para a Nouvelle Vague, só deu esse passo mais tarde.

JLG: A história de Rossellini é a mesma que a do Cristo… A mesma coisa com Renoir, que filmou o Dr. Cordelier no momento em que Claude Berma fazia seus dramatiques. Éramos subjugados pelo trabalho de Renoir e incendiávamos Claude Barma.

SD: Essa dupla herança da televisão é muito interessante. A televisão francesa foi construída em grande parte na continuação do cinema de qualité française, o dramático. E, ao mesmo tempo, nos anos 50, certos grandes cineastas como Rossellini ou até mesmo como Bresson e Tati, que não trabalharam necessariamente para a televisão, antecipavam o dispositivo da televisão, vendo que eles poderiam obter outros efeitos de grande amplitude com uma memória do cinema, ou seja, um filme. Você era crítico e depois cineasta, e você hesitou entre os dois. Jamais houve discurso antitelevisão da parte de cineastas como Welles, Hitchcock ou Tati. Houve então um tipo de incesto feliz no começo, que tornou-se logo depois infeliz.

JLG: Para retomar a imagem da terra e do arado, digamos que eles eram ao mesmo tempo o asno e o boi… É preciso não confundir o terreno e o instrumento: a televisão não é um terreno, ela é um instrumento. A partir do momento em que o instrumento torna-se o terreno, chega-se à AIDS… Acho que ninguém quer curar, ninguém quer ver, a coisa vai melhorar, mas não haverá cura tão cedo… Quando François Jacob examina linfócitos, antígenas, anticorpos, se ele não fizer o mesmo tipo de relações que ele fez, graças aos quatrocentos anos de intervalo, com Vésale e Copérnico ,ele não vê. Nesse caso, ele deveria dar uma olhada em Chandler, ou em John Le Carré, e sobretudo os primeiros romances de Peter Cheney: ele veria o trabalho da célula, do espião, do código. São as mesmas palavras. Eu não sou capaz de ir mais longe, eu digo apenas o que está lá para ver, e que com seus gênios individuais, eles podem encontrar um começo de vacina. Para isso, seria necessário fazer cinema, mas quando eles vão ao cinema eles gostam de L’Été meurtrier, fazer o quê? A televisão é alguma coisa de “faramineux”, por causa de sua popularidade. O cinema, o romance, a pintura de inspiração européia fizeram uma parte das coisas que eles podiam fazer: a criança cresceu. Então a televisão não fez quase nada; e visto seu universalismo e sua popularidade, é uma catástrofe em escala mundial.

SD: É a passagem de algo que podia ser universal a alguma coisa que voltou a ser vilaresco… Lá na Suíça, se a gente liga a televisão, vemos o que acontece na “vila suíça”, mas sabemos também o que se passa na “vila italiana” que está ao lado. Cada um tem seus ritos, suas particularidades… Tem-se o sentimento de um engrandecimento enorme do terreno e de um arado pequenininho, que vai sempre no mesmo sentido. Enquanto o cinema tinha um terreno que não era completo, um terreno de explorador, onde o que havia sido descoberto o havia sido pessoalmente…

JLG: Para mim, isso se tornou mais claro quando percebi, depois de um certo número de anos, que não se mostrou os campos de concentração. Falou-se deles, mas eles não foram mostrados. Pode ser por causa da minha classe, da minha culpabilidade o motivo pelo qual eu me interessei por isso… Foi o que me mostrou, por exemplo, que a nouvelle vague não era um começo, mas um fim.

SD: Se o cinema pôde explorar e mostrar tanto, não foi pelos acontecimentos inéditos na história da humanidade: as duas grandes guerras mundiais e os campos? A Primeira Guerra Mundial modificou rapidamente e com muita força a linguagem do cinema. Penso em Gance, em Griffith, em Vidor, em Raymond Bernard, ou em Renoir, que participou da guerra como cavaleiro… A percepção do mundo retornou como os campos, como as trincheiras.

JLG: Depois, houve dois sobressaltos: o neo-realismo italiano e a nouvelle vague.

SD: Sim, e eu penso que Fassbinder fecha esse sobressalto, tentando reconstituir algo que não teve imagem, a Alemanha do pós-guerra. (…) O que é hoje precisar de uma imagem, nessa paisagem audiovisual que se desenha, com a sociedade que mudou?

JLG: É uma questão que eu me coloco comumente quando tento mostrar imagens, pictures como dizem os americanos. Tento encontrar respostas, procurando saber qual era a questão a essas respostas que foram dadas.
É preciso não confundir a necessidade e o desejo. No fim do séc. XIX, o indivíduo se sentiu uma identidade, não era mais o povo do qual fala Malraux, aquele que escutava Saint-Bernard. As pessoas se reconhecem: se eu vejo uma imagem sua, eu não digo que é uma imagem de Toubiana. Nesse reconhecimento, há também o ponto de vista guerreiro, do esclarecedor, como Davy Crockett no filme de John Ford: somos reconhecidos ao mundo por nos reconhecer e nos permitir que nos reconheçamos.
Até os campos, o cinema foi a identidade das nações, dos povos. Depois, isso como que desapareceu. Examino isso no episódio 3B, que se chama A Resposta das Trevas, que fala dos filmes de guerra. Ela diz, para resumir, que o cinema é uma arte ocidental, feita por jovens brancos. Anne-Marie [Miéville] gostou de cinema antes de mim, num momento em que o cinema era proibido por sua família, porque ele era considerado como alguma coisa de baixa qualidade. Ora, quando ela ia, ela só podia ir aos westerns. Tirando Jeff Chandler, de quem ela gostava porque o fazia rir, ela não suportava nada, e ainda hoje um pouco, esses caras de cavalo. Os americanos invadiram o mundo pelo cinema, depois eles invadiram mais ou menos amigavelmente segundo outros procedimentos. Hoje, são eles que contam a guerra do Vietnã, e não os chineses nem os vietnamitas. A Guerra de 1914 também foi contada principalmente pelos americanos. Há também muito a dizer sobre o desejo que têm os velhos europeus em oposição aos novos europeus de manter laços e se prosternar, de sustentar o dólar quando está fraco, de ajudar a baixar quando ele está forte… Ninguém além dos Cahiers gostou verdadeiramente de cinema americano. O que fez com que nos anos 40 não tenha havido cinema de resistência? Houve filmes de resistência, aqui ou lá, mas o único cinema que resistiu à ocupação do cinema pelos meios estandardizados foi o cinema italiano. Foi um país que perdeu sua identidade. A Itália reiniciou depois de Roma Cidade Aberta. Benedetti devia comprar toneladas de Canigou aos descendentes dos cães de Rossellini…
Os russos fizeram filmes de propaganda, os americanos fizeram filmes de publicidade, os ingleses fizeram seu cinema habitual, a Alemanha não soube fazer por ela, os franceses fizeram apenas filmes de prisioneiros como La Bataille du Rail, os poloneses tentaram duas vezes fazer filmes sobre os campos: A Passageira e Última Etapa. Mas eram tentativas individuais, não era o caminho de uma nação. Ora, na Itália o cinema representou a possibilidade de fazer parte de uma nação, e de estar no interior desta nação. Depois, isso desapareceu.
Se gostamos ainda dessa idéia de cinema na televisão, é que ainda resta uma lembrança disso, é como quando os gregos amam ouvir as histórias de Zeus. Não temos mais nossa identidade, mas quando ligamos a televisão, há um vago sinalzinho que talvez tenhamos ainda uma. Depois, os filmes desaparecerão da televisão.

SD: A América é um país à parte, que continua a fazer filmes renovando muito pouco os moldes de narrativa e as formas. É um cinema muito formatado de uma vez por todas, desde o começo do cinema falado.

JLG: A América não tem história no mesmo sentido que a China, a Pérsia ou o Egito. Contrariamente, ela está cheia de várias pequenas histórias e, de repente, pela via inconsciente da Primeira Guerra Mundial, depois muito consciente na Segunda Guerra, ela se apoderou como um proprietário se apodera de uma casa porque o locatário morreu na guerra.

SD: A especificidade do cinema americano não está somente ligada à identidade. Todo mundo se coloca essa questão, os japoneses se perguntam muito sobre isso agora, e eles abandonam seu cinema. No caso dos americanos, o que funciona é também a idéia de origem: a Europa, uma passagem da Bíblia, um roteiro puritano, uma certa forma de narrativa… O cinema permite verificar se isso funciona sempre. Essa idéia de origens funciona ainda mais na televisão. Mas a Europa estava muito velha para dizer de onde ela vinha, e não foi forte demais para dizer o que ela podia inventar.
Que implicam como necessidade de imagens o individualismo, ou as conquistas sociais? O que um indivíduo espera de imagens que não seriam, como as imagens publicitárias, imagens que servem para esconder outras, mas que abririam para outro caminho? Esse indivíduo não seria mais escravo da sala de cinema, mas ele seria um pouco como você hoje. Nós estamos todos lá: que fazer com as imagens, já que se tem a tendência de consumi-las sozinho e de fazê-la servir a objetivos pessoais?

JLG: Voltamos à montagem: emprega-se a palavra imagem, mas elas não são mais imagens. Só há relações. Os americanos, que são mais pragmáticos, utilizam essa força.
Uma imagem jamais está sozinha, ela chama uma outra. Ora, hoje, o que chamamos de imagens são conjuntos de solidão religados pelo dizer que é, na pior das hipóteses, o de Hitler, mas que nunca chega a ser o de Dolto, de Freud, de Wittgenstein. Os impressionistas (que são aliás muito pouco amados, poucas pessoas têm em sua casa reproduções de Monet ou de um pote de flores de Renoir) tiveram uma visão, e o cinema nasceu tecnicamente mais ou menos na mesma época. Antes, não havia uma diferença tão grande entre um cego e alguém que via. Eu sempre disse que para continuar a fazer filmes, eu preferia perder meus olhos a perder a minha mão (…)
Os americanos dizem pictures para as imagens e para as fotografias, mas para os filmes eles dizem movie. Eles mantiveram a noção de movimento, eles são mais corretos. E para a televisão, eles dizem network, é a teia de aranha… Em todos os grandes filmes que vimos depois de cem anos, as dificuldades no trabalho eram o elemento motor do roteiro. É aliás ainda o caso nas séries, como Starsky e Hutch: é um detetive trabalhando. As pessoas sempre quisera mostrar o trabalho, e ao mesmo tempo elas sofrem. Agora, eles não gostam mais de seu trabalho. Antes, eles gostavam. O que eles não gostavam era de serem mal-pagos. Você encontra isso nos lugares mais desfavorizados: um chofer de ônibus gosta de seu ônibus, o que ele não gosta são das condições de trabalho. Pede-se que a imagem trabalhe “à l’oeil” [à vista, mas literalmente quer dizer “ao olho”. N. do T.], não à palavra. O francês é interessante por esses passes de mágica… Poderia-se dizer “trabalhar à mão”… “Trabalhar o olho” quer dizer não trabalhar. A identidade está no embrião… Não se espera mais representações do real e, ao mesmo tempo, não se espera mais nada de si mesmo, e querem figuras no sentido em que os patinadores fazem figuras.

SD: É o que se dizia alegremente nos anos 70: abaixo a representação, política e artística. Mas no cinema, sobre o qual você hoje faz a história, era-se representado na tela, era possível ser tomado refém pelo filme, depois restituído ao mundo, enriquecido. Mas estava muito ligado ao medo de ser tomado, e depois de ser solto, e estava muito ligado ao sujeito. As pessoas se faziam um tipo de psicanálise selvagem vendo filmes. Mas não era uma representação feita em nossa ausência, contrariamente ao que se disse. Dava-se um passo ao lado, e olhava-se sozinho. Foi assim que aconteceu o desdobramento do cinema moderno, que também causou impasses, verdadeiras loucuras. Colocava-se, com efeito, essas questões: será que eu sou corretamente tonmado como refém? esses procedimentos são bons? eu vou a algum lugar assim? Moralizou-se a percepção de forma que se era representado pelos filmes. Muitas vezes, inclusive, eles não podiam funcionar sem nós. Hitchcock foi quem fez isso melhor. Depois passou-se para um outro sistema, sobre o qual os tecnocratas falam com uma grande candura e uma grande felicidade, pois isso lhes abre as portas de não sei qual paraíso: a participação. Parte-se do princípio de que temos uma relação interativa com a imagem, então ela não tem que nos representar, que não precisamos vigiá-la, nem ver se ela trabalha o real. Não estamos mais num período de guerra e de medo, mas antes de paz (com o mundo da televisão) e da angústia, e eu sou visado como indivíduo, e no melhor dos casos como cidadão. Quando refletimos sobre a imagem numérica, sobre a imagem de síntese, temos um estranho sentimento de que as imagens podem se autogerar uma as outras graças a programas (como a cissiparidade, ou seja, ao invés de fazer um filme como se faz um filho, de um ato sexual, de amor, a imagem se desdobraria como um clone). É um mundo cada vez mais sintético, como se houvessem alçado as figuras do mundo que as circunda, como se houvessem constatado que a câmara filmasse não somente as figuras, mas também o que havia em volta. É verdade que certos cineastas trabalharam em passar do detalhe ao conjunto. Hoje, parece que o único objetivo é ter imagens que trabalhem sozinhas, e que trabalhem como num número de trapézio: no vazio, de forma vazia, in vitro. Não se quer mais o meio-ambiente. Ora, meio-ambiente é nossa relação com os outros, mas também com o resto do mundo. Por isso ele tornou-se tão tribal: a televisão não se ocupa do resto do mundo, dá dele apenas alguns documentos.
De fato, o que me incomoda é que o cinema moderno alçou a figura humana, advertindo o espectador que ela tinha sido destruída, e que o negócio não era refigurá-la mostrando heróis soberbos que saíam dos campos. Ali, houve um atentado físico à essência humana; soube-se disso muito cedo, digeriu-se muito tarde, e mesmo assim não completamente. Hoje estamos num período em que o cinema não pode mais dar conta do meio-ambiente, seria muito importante trabalhar essa questão, que parece entretanto interessar a todos os homens de poder, os publicitários, as pessoas de comunicação e da mídia: agora que temos personagenzinhos sintéticos alçados, em que meio-ambiente vamos colocá-los? Ora, não há nenhum no momento… É a razão pela qual um filme como O Urso ou Imensidão Azul obtiveram tamanho sucesso: eles contam a história de pequenos espécimes individuados numa paisagem grande demais para eles. A publicidade, que foi criticada por razões morais um pouco curtas, certamente exerceu um grande papel nesse sentido: ela nos habituou a ver simplesmente um personagem, um corpo por vez. O que ela vendia, um desodorante ou Marlboro, não fazia nenhuma importância. O essencial era que se via apenas um indivíduo num não-meio-ambiente: um céu azul, uma piscina… A questão de refazer o meio-ambiente é muito importante, porque não sabemos em que mundo o indivíduo moderno vai habitar. No momento, ele está sozinho, e a figura dele está mais próxima da experiências da Ilha do Dr. Moreau ou de Frankenstein. Não se sabe muito bem como isso funciona, então aplica-se esse mimo num animal vizinho do homem, num mamífero que é o urso. Quer-se ensinar ao homem aquilo com que ele se parece vendo de lado um animal que se veste como ele. Procura-se dizer a ele que sua história se parece com a dele, mas não se está verdadeiramente certo. É essa dúvida que conduz Jean-Jacques Annaud, muito crapulosamente, aliás, a fazer tanto o realismo como a trucagem. Para mim, é trágico ver como, quando não se colocam mais as questões de montagem, é a questão da figura, não necessariamente humana, que se coloca. Se isso é um pouco verdadeiro, compreende-se porque você se interessa pela história do cinema, porque o cinema não se interessou nisso. Ele, no momento do cinema falado, simplesmente jogou um jogo que lhe fez estalar a goela, flertando com as propagandas que criavam espécimes de super-homens. Isso abortado, e logo depois todo cinema moderno foi uma tentativa de não reconciliar rápido demais, para retomar o título do magnífico filme de Jean-Marie [Straub]. Hoje, é Noite e Neblina Não-Reconciliados. Mas uma voz muito difusa, um pouco cínica e angustiada diz que há uma reconciliação, não se sabe entre quê e quê. Não querem mais se embaraçar com o registro do mundo, e sim fazer trabalhar para nós figuras que não mais virão da percepção, mas do mundo mental de nossas necessidades comerciais.

JLG: Pode-se tentar trazer outras figuras; na patinação, há figuras livres e figuras impostas… Vejamos jogos na televisão, eu gosto de tênis, de futebol, aliás há muito pouco handebol ou voleibol, muito poucos jogos femininos também. Mas é uma das raras coisas, junto com os filmes, que fazem as maiores audiências da televisão porque as pessoas comunicam seguindo regras, ou transgredindo-as. Existe então ao mesmo tempo direito, dever, desejo, jogo e trabalho, pois são profissionais. Nunca vemos amadores na televisão. E, bem, nós continuaremos a fazer filmes de amador, com figuras de amador e outras figuras… Quando você olha um desenho de Matisse e um outro de Giotto, é quase a mesma, e entretanto isso não impediu Matisse de pintar por toda sua vida. (…)

SD: Gostaria que você descrevesse esses dossiês impecáveis, de cores diferentes, que estão diante de você. É a sua bateria de guerra para fazer a sua história do cinema?

JLG: Sim, são classificações, sub-classificações. Antes, me diziam que eu tinha que ler a Vida de Littré, e depois a de Cuvier… Para ver como a idéia de classificação veio a eles num momento dado. É também um pouco o momento em que Marx mostrou a noção de luta de classes. Logo, minha história de cinema chama-se primeiramente Todas as Histórias. É um monte de pequenas histórias onde podemos ver signos. Depois, é Uma História Só, porque é a única história que já houve, e você conhece a minha ambição: eu deduzo que é a única história que tenha ocorrido, que haverá e que não pode haver outra. É meu lado de pároco de aldeia. Depois, há estudos pontuais, cortes, como Fatal Beleza, que parte da lembrança do filme de Siodmak, Beleza Fatal (The Great Sinner/O Grande Pecador, 1949), com Ava Gardner, baseado em O Jogador, de Dostoiévski. É sobre o fato de que foram sobretudo garotos que filmaram garotas, e que isso também foi fatal para essa história, pelo simples fato de querer contar histórias. Depois, há um estudo mais prático que eu chamei de A Moeda do Absoluto, baseado no título do livro de Malraux sobre arte. É uma análise da crítica, porque isso nunca foi feito. Eu sempre fiz o que não é feito. Era até sistematicamente num momento: Rivette fez isso, Rohmer fez isso, Chabrol fez isso e, bem, eu também, eu faço o que eles não fizeram. Assim, a gente cobre o terreno. Permaneci muito sartreano sob esse ponto de vista: o homem é o que ele faz, e o que se faz dele. São críticas visuais, eu queria melhorar o que eu já tinha feito num programa. Tomemos como exemplo a guerra: eis como um cineasta estimável como Kubrick mostra a guerra, eis como um documentarista cubano mostra a mesma guerra, eis dois cinemas. Aí, eu penso que vou pegar 14 Juillet, ler três das tuas frases sobre esse filme e ver como você pode dizer isso? Pode-se descrever dessa maneira? Não, aí eu direi: o mal absoluto passou sobre Serge pelo tempo de um bater de asas.
Depois, A Resposta das Trevas mostra porque foi a Itália que fez o único filme de resistência.
Depois, Montagem, Meu Belo Anseio retorna de um artigo meu, sobre o qual eu não entendo muita coisa hoje: é a idéia que o cinema deveria ter conseguido alguma coisa. A pintura num certo momento conseguiu a perspectiva, Bach conseguiu um certo número de coisas em música, o romance conseguiu certas coisas, mas o cinema deveria e não pôde, pela aplicação da invenção do cinema falado. Quando vemos Papa d’un Jour, de harry Langdom, vemos os vestígios: podia-se fazer um filme de uma hora sobre fazer brincadeiras com um bebê. Isso seria impensável hoje. A última parte, Os Signos entre nós, mostra que o cinema é uma imagem de imagem de imagem de imagem… que representa uma grande parte da humanidade, e que seria possível ter achado mais soluções. Se filmamos um engarrafamento em Paris e se sabê-mos vê-lo (François Jacob e eu, por exemplo), podemos encontrar uma vacina para a AIDS. Porque o cinema mostra grande. É como o romance de Ramuz, que eu sempre tive vontade de filmar, que conta a história de um vendedor ambulante que chega num vilarejo e que anuncia o fin do mundo. Acontece uma terrível tempestade de cinco dias, depois o sol retorna, e o vendedor se fode. O cinema é esse vendedor ambulante.

SD: O que há em cada pasta? Fotos?

JLG: Sim, fotos que só podem ser fotos de cinema. Há também subdossiês que os preparam. O cinema esteve só, e só o cinema foi isso. Há também fins de filmes, que são citações, mas não necessariamente. É preciso conduzir a foto a seu caráter individual: é preciso não colocar muito texto, pois visto aquilo em que se transformou a televisão, isso recebe muito poder. Você diz demais. A foto só existe pela legenda que dão a ela, é o que dizia Walter Benjamin. Mas o filme pode existir sem a legenda. A foto deve ter seu nome sem ser emblemática. Por exemplo, para mostrar a guerra da Espanha, eu tinha uma foto de Malraux, e uma foto de Ingrid Bergman em Por Quem os Sinos Tocam. Eu tinha também Malraux em vídeo. Hesitei por muito tempo. Escolhi colocá-lo na foto, pois mostrar o vídeo é mostrar uma entrevista de Jean-Marie Drot, e o conjunto não seria explicitado. Então eu coloquei a foto, e mantive o som. E o casal de Por Quem os Sinos Tocam, o casal da esperança é Malraux e Bergman. Se eu tivesse colocado o plano de Malraux, eu teria que encontrar o plano de Bergman. Nesse sentido, eu me sinto próximo de Francis Ponge, que diz que o criador é um reparador do universo. Deve-se reparar os erros, e eu devo sem dúvida ser o primeiro a errar ao pensar que eu devo reparar os erros!

SD: E a sua presença física de comentador nas tuas histórias?

JLG: É para fazer televisão. A primeira série é feita com títulos de livros, a segunda será feita com títulos de obras musicais, picturais, depois de paisagens.

SD: Que dossiê mais te deu trabalho?

JLG: Nenhum. Eu até fiz a primeira série sem consultá-los. É o que eu chamo de arrebatamento. Na televisão, não é que não haja trabalho, não há arrebatamento. Então, o resultado é como uma partida de Leconte… Durante muito tempo, eu fui defeitista, eu meio que critiquei um pouco demais. Em momentos, eu tenho ciúmes ao ver que O Urso tenha um tal sucesso. Me faz bem ver que Straub reclama de mim pela amargura nesse nível! Eu fiz certas histórias de casais, e se eu não fui bem sucedido, é talvez porque não houvesse a boa figura. É preciso fazer um personagem que faça boa figura.

Se a imagem de síntese chegasse hoje como chegou o cinema falado, eu acho que eu pararia. Eu tentaria um pouco, eu não conseguiria, eu ficaria sem vontade e pararia. Eu não me sinto igual a essas pessoas que trabalham com máquinas que lhes permitem acreditar que eles fazem alguma coisa. É como o Minitel, dois anos depois, quando se tem problemas com a namorada, o Minitel não serve para nada. Entretanto, gosto muito das máquinas. Quando acabei as História(s) do Cinema, fui dizer obrigado a cada máquina, até os clignotants. Não tenho raiva dos japoneses ;por ter feito máquinas, eu tenho raiva deles pelo que eles fazem. Que eles façam filmes em imagens de síntese, mas que eles não contém comigo para escrever o roteiro… Como diz Rostand, as teorias passam, mas a rã continua…

Traduzido por Ruy Gardnier
a partir do publicado na edição 513 dos Cahiers du Cinema

Violência no cinema I

fevereiro 1, 2008

Thomas Alva Edison contrariou a todos os franceses, como os irmãos Lumiére, que desacreditavam dessa brincadeira de vaudeviiles – assim inicia-se a morte do ser humano do século XIX. A morte espiritual, claro. Porque se antes dos arco-íris que trariam nossa redenção perante os mais pessimistas românticos idealistas, e demais adjetivos pejorativos da época que se passava, existiam as sombras da comunidade antiga, clássica e pré-moderna ali como um espectro ético sustentanto o passado em moldes futuristas.

Primeiro foram as metrópoles. Grandes construções, grandes máquinas, grandes desafios para o novo milênio, grandiosidades, imensidades, e insegurança. Esta era profundamente democrática – todos deviam tê-la, todos deveriam usufruir dessa multidão ameaçadora, da criminalidade e violência que beirava o absurdo do apocalipse dos novos tempos. Carros substituem as charretes, e a eletricidade as velas e lampiões. O universo arcaico se extinguia, junto a seu encantamento.

As novidades vinham como um turbilhão de idéias desse novo mundo, de possibilidades infinitas, e de crescimento cada vez maior dessa massa de concreto que eram as aglomerações arquitetônicas das metrópoles, algumas, futuras megalópoles. O que poderia unir os pensamentos? Unir comportamentos? Unir atitudes?

O empresário via o cinema como uma dessas novas possibilidades acima do palpável e manipulável, mas que certamente parecia ter em vista este estímulo à vida em conjunto que vinha se delineando com os tempos modernos. Essas sombras do passado, de uma aristocracia decadente e de uma burguesia em ascenção, caracterizaram a estética dominante do primeiro cinema. Claro que, andando lado a lado com a violência dos mais resistentes do velho oeste, da criminalidade norte-americana, nação beligerante desde seu pequeno núcleo familiar irlandês, puritano, judeu, branco.

Thomas Edison era capaz de matar, de assaltar e de reverter trâmites burocráticos em prol do desenvolvimento de seu nome e de sua empresa. Conseguiu fazendo isso tudo. Hoje, o cinema, deve muito a ele.

o mito feminino

janeiro 30, 2008

Imagina uma moça que sai do interior de Catolé do Rocha na Paraíba e vai direto para a globo, ganha as telas das novelas e surpreende com sua beleza diferente. Uma beleza meio avançada para a época, mas que não soa destoante ou corrosivo para aqueles mais tradicionalistas. Ela então pinta seu cabelo e canta para o presidente parabéns pra você. Bem sabemos que isso não faz sentido algum.

Mas nos EUA fez – assim que, mais ou menos, nasceu um mito das telas que influenciou o mundo, tal como fez um dia James Dean. Marlyn Monroe praticamente criou o clichê de mulher pop. Ela é a criadora tanto da Madonna quanto da imagem de Britney Spears. A sua sexualidade foi explorada tal como o cinema bem sabe fazer , através do erotismo do mostrar-sem-mostrar. Nada mais enlouquecedor para as feministas – nada mais generoso para com elas, também. Marlyn foi um símbolo de liberdade feminina.

Só que não é consenso esse papel de Marlyn entre as mulheres. Afinal, as pessoas lembram que ela se casou com um jogador famoso de baseball? Mas lembram da ventania que mostrava suas belas pernas, ou do presente a Kennedy. Ela vivia, parecia, como quem queria ganhar a vida com seu símbolo. Ela mudou completamente. Pareceu mais viva quando virou uma mulher midiática – mas no fim, sabemos, que ela era cada vez mais uma coisa, e não uma pessoa.

Podemos arriscar que sua morte veio disso. E podemos, também, arriscar, que sua vida hoje vem dessa sua coisificação.

Autor de ensaio sobre obras de Glauber Rocha avalia produção nacional

Com o livro “Sertão Mar”, o professor e crítico de cinema Ismail Xavier esquadrinhou o fenômeno do cinema novo, pela análise da obra de seu maior autor, Glauber Rocha (1939-81), e de sua crença numa “estética da fome” como vetor para uma cinematografia nacional com traço próprio e consonância com a trajetória do país.

Escrito em 1983, “Sertão Mar” tornou-se um ensaio obrigatório ao estudo de um aspecto relevante da cultura brasileira, mas estava inacessível a novos leitores, já que os exemplares esgotaram nas livrarias.

Esse paradoxo deixou de existir neste mês, em que “Sertão Mar” (232 páginas, R$ 49) ganhou reedição da Cosac Naify. Um quarto de século após seu lançamento, “Sertão Mar” oferece ocasião para refletir sobre o cinema brasileiro de hoje, conforme Xavier atesta, na entrevista a seguir, que concedeu à Folha antes de partir para uma temporada de três meses na Inglaterra, como professor visitante nas universidades de Leeds, Manchester e Londres.

FOLHA – “Sertão Mar” estabelece um contraponto entre a obra de Glauber Rocha e a de seus contemporâneos. Se fosse delinear um contraponto de “Barravento” e “Deus e o Diabo na Terra do Sol” com a geração que sucedeu Glauber, que títulos seriam candidatos a esse cotejo?

ISMAIL XAVIER – Há uma diferença. As questões presentes em “Barravento” foram muito trabalhadas pelo cinema dos anos 70 e 80, a partir de filmes que trabalharam a religião afro-brasileira, de “Amuleto de Ogum” a “Xica da Silva”. Estes e outros filmes geram cotejos possíveis, mas não vejo agora no contemporâneo um contraponto tão nítido como aquele trazido pelas formas novas de se pensar o sertão.Essas formas são variadas, mas o cotejo mais interessante se faz entre Glauber e cineastas como Paulo Caldas e Lírio Ferreira, que, em “Baile Perfumado” [1997], trataram o sertão como mundo permeável ao consumo, inserido numa rede de trocas que dissolvem o isolamento necessário em “Deus e o Diabo na Terra do Sol” para que o sertão, como microcosmo fechado, pudesse compor a alegoria do Brasil. Muda a imagem do cangaceiro, de proto-revolucionário passa à condição de ícone pop. Passamos do tema da revolução pré-figurada no cangaço ao mote do pragmatismo.

FOLHA – O fato de a obra de Glauber ser a grande referência do cinema brasileiro diz respeito ao vulto de sua genialidade ou ao declínio de nossa produção desde então?

XAVIER – A estatura de Glauber vem da articulação única entre sua forma e o que de social e político continua nela implicado e atual. A conjuntura presente define, para o cinema, outras demandas e outros caminhos, dentro de um esforço de comunicação que tem seus protocolos, com filmes de gênero e roteiros mais ajustados a uma dramaturgia clássica ou ao road movie (como acontece com Walter Salles Junior e outros cineastas que dialogam com Wim Wenders). Na maioria dos casos, a ênfase tem recaído sobre o aspecto psicológico da experiência. O que não exclui a emergência de talentos afinados à tradição do moderno, como Luiz Fernando Carvalho. No geral, não sei se cabe falar em declínio. O que houve foi uma mudança de projeto, com um ajuste de ambições em novo patamar, pois o clima é mais adverso e ficou mais difícil capturar o tempo.

FOLHA – Para produzir hoje “uma crítica que mostre a forma estética como decantação da experiência histórica”, o que “Sertão Mar” faz, conforme observa o pesquisador Leandro Saraiva no posfácio, é necessário trocar o cinema por outra arte?

XAVIER – Não. Se você admite a premissa de que há uma relação entre forma estética e experiência histórica, as diferentes formas de expressão certamente estarão nos oferecendo trabalhos que nos desafiam a formular com clareza esse nexo. O cinema não está excluído.
Não temos o recuo que permita pensar de modo mais abrangente esta decantação hoje, mas algo vai se esboçando. Há uma intuição de que é o cinema asiático que está conseguindo melhor condensar o tempo presente – veja “Em Busca da Vida”, de Zhang-ke.

O filme acabou incomodando algumas pessoas com o frenesi junto aos planos fugazes e rápidos. Mas é assim, São Paulo. E é assim também a loucura do limiar entre a realidade e aquilo que se sonha. É assim o cinema. Principalmente um cinema mergulhado no passado vanguardista com olhos na natureza distante de nossa realidade seca.

Seca e concreta, brusca, sem saída. Essa vanguarda, nova, essa revisitação às nuances da fotogenia e da natureza que nos assassina e aterroriza. O jeito de se falar em uma arte pela arte hoje é entrar na ciência, na ficção científica – paradoxalmente. Uma poesia parnasiana no meio dos prédios e de um trânsito de carros, um tráfego interminável via a morte.

Não é entediante, mas deixa alguns espectadores brasileiros sem paciência no jogo de esconde e esconde, de acontece e não acontece. Um jogo literário transposto para as telas, que puxou uma bela mise em scéne proposta aos atores, que estão profundos em suas interpretações. Marco Ricca, principalmente, que repete, praticamente, um personagem do filme de Beto Brant, chamado Crime Delicado.

Mas o jogo crítico agora é não com a própria arte, mas com a realidade. Se afundar, portanto, na via láctea de estrelas que nascem e morrem nas avenidas à procura de dinheiro e, ou, impulsionando o caráter humano futurista e mercador – devido o grande avanço tecnológico que a humanidade conseguiu com as viagens para fora da órbita terrestre, mesmo com a pequena cachorrinha da raça Laika no Sputnik. Se afundar nessa ficção não parece ser mais esquizofrenia. É a própria realidade que nos envolve, é a nossa natureza.

Entrevista Com Chris Marker

Na mostra de fotos da galeria Peter Blum, está disponível uma cópia de uma dessas raríssimas entrevistas de Chris Marker, feita por email por Samuel Douhaire e Annick Rivoire, para o jornal Liberation, em 2003:

LIBERATION: Cinema, fotonovela, CD-Rom, instalação de vídeo… Existe algum meio que você não experimentou?

MARKER: Sim, gouache.

LIBERATION: Por que você concordou que apenas alguns de seus filmes fossem lançados em DVD e como fez a escolha?

MARKER: Vinte anos separam “La Jetée” de “Sans soleil”. E outros vinte anos separam “Sans Soleil” de hoje. Nestas circunstâncias, se eu fosse falar em nome da pessoa que fez esses filmes, não seria uma entrevista, mas um debate. Eunão acho que escolhi ou aceitei: alguém falou em fazer e foi feito. Eu já sabia que há certa correspondência entre esses dois filmes, “La Jetée” e “Sans soleil” e não precisava explicar isto. Até que eu encontrei uma nota anônima sobre meus filmes, publicada num programa em Tóquio, que dizia: “Breve a viagem terá um fim. E então nós vamos saber se a justaposição de imagens faz algum sentido. Vamos entender que rezamos com um filme como quem está numa peregrinação, a cada vez estamos novamente diante da morte: no cemitério de gatos, diante de uma girafa morta, ao lado de kamikazes no momento do salto, em frente a guerrilheiros mortos em combate. Em “La Jetée”, o experimento com o futuro termina com a morte. Ao tratar do mesmo tema, vinte anos depois, Marker supera a morte com a oração”. Quando li isso, escrito por alguém que eu não conheço, que não sabia como fiz aqueles filmes, senti uma emoção e percebi que “alguma coisa” havia, afinal, acontecido.


LIBERATION: No CD-Rom “Immemory”, lançado em 1999, você disse que havia encontrado um meio ideal para o seu trabalho. O que você acha do DVD?

MARKER: No CD-Rom, o importante não é a tecnologia e sim a arquitetura, em forma de árvore, na qual de um mesmo caule saem vários galhos, várias possibilidades diferentes de jogo. Vamos agora fazer DVD-Roms. A tecnologia do DVD é soberba, mas nem sempre é cinema. Godard definiu de uma vez por todas: no cinema, você levanta os olhos para a tela; na televisão, você baixa os olhos para o monitor. E ainda há a questão do projetor: as duas horas de uma sessão de cinema são passadas no escuro. É a porção noturna que fica junto a nós, que fixa a memória de um filme de um modo bem diferente de um filme filme num monitor de TV ou de computador. E vamos ser honestos: é bem diferente. Assite outro dia “Um americano em Paris” na tela do meu iBook e quase redescobri a luz que eu havia sentido em Londres, em 1952, quando estava filmando com Alain Resnais e Ghislain Cloquet “Les statues meurent aussi”… Nós começávamos a filmar todos os dias, depois de ver a sessão matinal, das 10h, de “Um americano em Paris” num cinema da Leiscester Square. Eu achei que havia perdido aquela luz para sempre, taé que revi o filme no computador.


LIBERATION: A democratização dos meios de filmagem (DV, edição digital, distribuição via internet) seduz um cineasta socialmente engajado como você?


MARKER: Esta é uma boa oportunidade para eu me livrar deste rótulo. Muita gente acha que “engajado” significa “político”, e a política, a arte do compromisso (que é o que deveria ser porque se não há compromisso, existe apenas a força bruta, da qual temos tantos exemplos atualmente), me entedia profundamente. O que me interessa é a história. A política me interessa apenas na medida que carrega a marca da história no presente. Com uma curiosidade obsessiva (que eu identifico com alguns dos personagens de Kipling, com o Elephant-boy de “Just-so stories”, por sua curiosidade insaciável), eu continuo a perguntar: como as pessoas conseguem viver neste mundo? E vem daí a minha mania, de ver como as coisas são neste lugar ou naquele. Por muito tempo, aqueles que eram melhor posicionados para “ver o que estava acontecendo”, não tinham acesso aos meios para dar formas às suas percepções, e a percepção sem forma é enfadonha. Agora, de súbito, esses meios estão acessíveis. Para gente como eu, é um sonho que se tornou realidade. Escrevi sobre isto num folheto que saiu no DVD do meu filme. Uma cautela necessária: a democratização dos meios ainda carrega constrangimentos financeiros e técnicos, e não nos desobriga da necessidade do trabalho.Comprar uma câmera de DV não confere a alguém, magicamente, o talento para fazer filmes que ele não tenha, nem fazer desaparecer a preguiça daqueles que não querem se interrogar para saber se esse talento existe ou não em si mesmos. Você pode miniaturizar o quanto quiser o equipamento, mas fazer um filme existe muito trabalho e uma boa razão para fazer isto. Esta é a história de cineastas, como os que se juntaram no grupo Medvedkin, jovens operários que, no período pós-68, tentaram fazer filmes sobre suas vidas, e que tentaram alcançar algum recurso técnico, com os meios que dispunham na época.Como eles reclamavam: “A gente chega em casa depois do trabalho e você ainda nos pede para trabalhar mais!” Mas eles perseveraram e você deve reconhecer que algo aconteceu ali, porque 30 anos depois nós os vemos apresentar seus filmes no Festival de Belfort,diante de uma platéia muito atenta. Os meios disponíveis na época eram o filme 16mm mudo, o que representava três minutos de rolo de filme, um laboratório, uma mesa de edição, alguma forma de adicionar o som na edição, tudo o que você tem hoje dentro de uma pequena caixa do tamanho da palma da mão. Eles deram uma lição de modéstia para os jovens de hoje, que disperdiçam recursos, assim como os jovens daquela época aprenderam sua lição ao se juntarem num grupo sob inspiração de Alexander Ivanovitch Medvedkin e seu cinema-trem. Medvedkin foi o cineasta russo que, com os meios do seu tempo (filme 35mm, laboratório, mesa de edição, tudo instalado num trem) saiu filmando nas locações mais diversas, levando os filmes aos lugares mais distantes. Medvedkin inventou em 1936 a televisão: filmava durante o dia, revelava e editava de noite, e passava no dia seguinte para as pessoas que ele havia filmado (e que muitas vezes participavam da edição). Acho que isto é fabuloso e ele não foi sequer mencionado na “História do cinema”, escrita por George Sadoul, livro considerado naquela época a “bíblia do cinema soviético”. Os trabalhadores que eu filmei na Rodésia em 1967 eram bem parecidos aos kossovares que eu filmei em 2000: nunca tinham visto televisão. Para minha surpresa, certa vez estava explicando a edição de “Encouraçado Potemkim” para um grupo de aspirantes de cineastas na Guiné-Bissau, usando velhos rolos de filmagem. Agora, aqueles cineastas estão tendo filmes selecionados para o Festival de Veneza. Fiquei impressionado com um musical de Flora Gomes. Achei a síndrome de Medvedkin outra vez num campo de refugiados da Bósnia em 1993,um grupo de garotos que havia aprendido técnicas de TV pirateando transmissões por satélite e usando equipamentos antigos emprestados por ONGs. E eles não haviam copiado a linguagem dominante: eles usaram aqueles recursos para ganhar credibilidade e produzir notícias para outros refugiados. Uma experiência exemplar. Eles tinham as ferramentas e tinham a necessidade. Ambos são indispensáveis.

janeiro 21, 2008

Jim entrou para as mobilizações culturais, ou contraculturais, da década de 60, como um agitador sexual e um drogado incompreensível. Foi preso, e nem por isso deixou de cantar insanidades pelo mundo. Ele iniciou seus estudos na Universidade da Califórnia, em cinema. Foi colega de Oliver Stone, um dos remanescentes de uma escola de cinema mais próxima do underground e das críticas sociais, nos EUA. No vídeo a seguir, Jim é garoto propaganda daqueles mais superficiais possíveis, um modelo usado para propaganda da universidade (outra, não a UCLA) – mas ele foi, durante a publicidade, um dos que não conseguiu a vaga para os estudos.
Por que Jim Morrison foi preso? E por que ele ganhou a vida fazendo arte subversiva, na maioria das vezes? Ora – ele poderia muito bem ser um garoto propaganda de grandes corporações…

Esse recado vai para quem ainda acha que a publicidade é completamente neutra e ascéptica. Ela é um método, que infelizmente, quanto mais se passa o tempo, mais ela fica sem conteúdo e afetividade.